CITRO, Silvia. 2009.  Cuerpos significantes. Travesías de una etnografía dialéctica. Buenos Aires: Editorial Biblos. 351 pp.

Lucrecia Greco

Programa de Doutorado em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires.

Assinalar, na análise de um processo particular, os horizontes compartilhados da experiência da corporalidade atualmente representa um verdadeiro desafio epistemológico e, também, político. Nele se envolve Silvia Citro, com seu livro Cuerpos significantes: travesías de una etnografia dialética, em que numa etnografia das performances rituais do povo Toba/Q’om do Chaco argentino nos convida a avançar por um caminho teórico-metodológico dialético rumo ao entendimento do papel constitutivo da corporalidade na vida social. Nesse andar, atento também aos processos históricos pós-coloniais, o livro ruma a uma perspectiva de cunho inovador e “desexotizante” para os estudos das terras baixas sul-americanas.

O livro emerge da tese de doutorado que a antropóloga realizou junto aos Q’om, analisando as performances rituais da Igreja Evangélica Unida (primeira igreja cristã aborígene da Argentina). A autora, inspirada pelas tensões assinaladas por Ricoeur entre a “revelação fenomenológica” dos sentidos e a “suspeita estruturalista”, trabalha as relações existentes entre a experiência da “carne” compartilhada e os processos históricos, a continuidade e as mudanças, a agência e o poder, a estrutura e a história, a experiência e os discursos, por fim, entre o povo toba e os Doqshi (brancos). Três travessias delineiam a trilha dialética: uma teórico-metodológica, uma histórica e uma etnográfica.

Na primeira travessia encontramos a chave para percorrer o livro. Trata-se do conceito de “corpos significantes”, o qual nos leva a entender os corpos e as experiências motrizes, afetivas e perceptivas como produtos e como ativos produtores de práticas e sentidos. Opondo-se ao relativismo extremo que nos tem colocado em “[...] peligrosos callejones lógicos y políticos sin salida [...]” (:41), busca-se compreender o similar sem subsumir as experiências particulares numa generalização. Nessa trilha surgem alguns afastamentos em relação às “perspectivas” dos estudos amazônicos. Assim, reconhecemos os corpos significantes na sua materialidade, transitando desde a infância até a velhice, sofrendo variações culturais e sendo marcados por estruturas sociais de raça e gênero.

 

A concepção de uma materialidade comum permite à autora desenvolver um provocante diálogo entre diversas vozes da etnografia, da psicanálise e da filosofia “ocidental” e as distintas vozes toba. Todas elas abordaram, no seu tempo- espaço e a partir de distintos ângulos (muito provavelmente etnocêntricos), as corporalidades humanas.

Alguns aspectos comuns da experiência da carne são assinalados nas filosofias “a partir do corpo” de Merleau-Ponty e Nietzsche e, também, da psicanálise. O filósofo francês (recuperado pelos autores do embodiment) realiza uma descrição fenomenológica da experiência pré-objetiva da carne no mundo, o papel ativo do corpo como sujeito da percepção e a dimensão intersubjetiva da constituição dos sujeitos. Por outro lado, a descrição nietzschiana do Super-Homem e sua vontade do poder centram-se na capacidade do corpo de transformar o mundo por meio do movimento. A psicanálise entra no diálogo para dar conta da resistência (e do estímulo para o avanço) que encontra essa capacidade de transformação: seria a falta constitutiva reconhecida por Lacan, ou o rumo ao significante vazio de que fala Laclau.

O atravessamento pelas específicas estruturas de poder, os discursos e a história também são experiências compartilhadas. Para esta parte do caminho, a autora leva nossa atenção a algumas ideias de Bourdieu, Foucault e Butler: os três ligados a perspectivas da “suspeita”. Do primeiro, a autora toma o estreito vínculo entre práticas e representações, história e presente. Em Foucault, encontramos os modos de dar conta do poder dos discursos para produzir corpos (atenção: nunca para “causá-los”). Por último, Butler nos leva a entender a produção, a reprodução e as mudanças que se dão no mundo por meio da ideia de reiteração performativa.

O corolário político e epistemológico dessas tensões entre o reconhecimento da experiência comum da carne e essas visões da “suspeita” é evitar pensar em liberdades controladas, para nos encontrarmos com sujeitos livres a partir de sua situação no mundo, como propôs Merleau-Ponty.

É precisamente situando a liberdade Q’om no processo histórico de integração e autonomia com o hegemônico mundo Doqshi (branco) que, na segunda travessia, a autora analisa genealogicamente alguns dos significantes-chave construídos pelos Toba, assim como seu uso nos atuais posicionamentos identitários. Já a própria representação dos antepassados como “caçadores coletores”, “selvagens” e “fortes” é fruto do processo da redução dos Toba pelo Estado e pelas rebeliões frente aos Doqshi. Além disso, esta representação funciona como símbolo de um passado livre ou, a partir do discurso de conversão ao Evangelho, como um passado do qual se distanciar.

Aproximando-se simbolicamente do atual poder dos políticos locais, os Q’om também se mostram como “peronistas”, operando um processo de memória seletiva, em que existiria uma relação de reciprocidade com um peronismo ao qual atribuem fatos que se deram inclusive fora do período peronista (como a obtenção de terras, anterior).

No seu posicionamento como “evangélicos”, os Toba se aproximam dos modelos Doqshi, já que as igrejas são identificadas como agentes que ajudaram o acesso às instituições do Estado destinadas à organização da economia doméstica (como a agricultura, a administração de dinheiro etc.) e ao afastamento do alcoolismo posterior à intrusão dos brancos ou Doqshi. Aqui a memória seletiva esquece as relações de diversos e importantes líderes religiosos Toba do século XX com o catolicismo e o xamanismo, ressaltando, assim, sua ligação com práticas e símbolos das igrejas pentecostais. No entanto, o próprio afinco da Igreja Evangélica Unida se relaciona à sua capacidade de integrar a moral pentecostal e os rituais xamânicos. Por último, ao se identificarem como “pobres” e “indígenas”, os Toba realizam uma crítica metacultural das assimetrias concretas, se desvinculando dos Doqshi e colocando em evidência as relações de desigualdade nas quais estão posicionados.

Atravessadas as trilhas marcadas pela história, na terceira travessia o caminho se detém nas etnografias dos corpos significantes concretos. Assim, nos aproximamos das performances corporais, em que os Toba produzem diversos sentidos e vivências, da comum experiência perceptiva da carne no mundo até a diversidade material biológica dos sexos e das gerações. Ao mesmo tempo, afastamo- nos da perspectiva fenomenológica numa análise genealógica das práticas e experiências rituais para enxergá-las a partir do atravessamento por processos históricos, representações e experiências culturais, os quais dão poder ao monte, ao relógio do trabalho, ao Deus cristão, ao contato com o xamã ou à voz do pastor, às danças festivas ou evangélicas; aos cantos xamânicos ou à música eletrônica da IEU, à beleza doqshi ou q’om.

Nas performances rituais notamos a importância que o “vínculo do corpo com o mundo” humano e não humano tem na constituição dos sujeitos toba e como ele opera por meio de sensações como o gozo e a fusão perceptiva, gerando “inscrições sensório-emotivas” que transformam as existências e outorgam poder aos distintos grupos.

Os anciãos são os que ocupam as posições de liderança religiosa e política, tendo o privilégio de escutar os índices do mundo, encarnar e/ou se contatar com o poder humano e não humano. Dessa forma eles operam nas performances rituais das curas, nas orações e nas danças. Ainda que cada vez sejam menos os anciãos Pi ogonaq que obtêm poderes xamânicos da floresta, continuam sendo os anciãos evangélicos os que obtêm poder a partir de Deus e das relações com os líderes peronistas do poderoso mundo branco.

Já o poder dos jovens se relaciona à sua posição intersticial, a qual lhes permite estar na “cultura” (q’om), no sistema educativo formal básico do mundo doqshi e no Evangelho, disputando e negociando o poder com os anciãos. Mesmo disciplinados pela escola, pela Igreja e pelo trabalho, são os jovens que recebem do “vínculo com o mundo” — seja por meio dos sonhos ou dos contatos com o divino — a criatividade para produzir novas performances rituais (tanto no antigo baile sapo, como na atual dança evangélica da roda, que permitem seduzir o parceiro sexual). Este vínculo corpo-mundo também se manifesta no poder de produção artístico-musical para o espetáculo, o que está em voga atualmente.

Por sua vez, o particular poder das mulheres se relaciona ao horizonte compartilhado da experiência da carne feminina, em que o vínculo com o mundo é mais intenso especialmente pela abertura da vagina, pela menstruação e pela gravidez. Devido a esse poder, os Toba e diversos outros povos associam as mulheres ao perigo e à natureza, criando a necessidade de controlá-las por meio das prescrições do poder cultural masculino e atribuindo-lhes grande poder simbólico e escasso poder sociopolítico. Apesar de tudo, as mulheres Q’om ressignificam e disputam esses mandatos da matriz simbólico-identitária dos gêneros, pois escolhem seus parceiros, participam cada vez mais das organizações políticas ou criam novos agrupamentos.

Em todas as travessias do livro não nos encontramos com sujeitos que se afundam na estrutura, mas com os corpos significantes toba, que, como qualquer corpo humano, são atravessados por processos específicos e produzem, nos seus movimentos, resistências específicas. Assim, considerando a particularidade da experiência indígena e a historicidade na qual se insere, o caminhar dialético com os Q’om nos propõe repensar as representações e práticas corporais dos povos das terras baixas da América Latina. Visando um intercâmbio entre os estudos amazônicos e os do ChacoFinalmente, a autora atravessa o desafio epistemológico e político de assinalar similitudes entre distintas experiências humanas com o corpo, a história e o poder. Portanto, é representativa a foto da capa, em que o movimento da caminhada nos situa no caminho histórico e nos abre os caminhos da liberdade, esperando, numa “ilusão política”, que as pegadas doqshi já não borrem as dos Toba, e que os textos dos antropólogos já não falem dos povos, mas com eles e para eles.

 

GRECO, Lucrecia. Cuerpos significantes: travesías de una etnografía dialéctica. Mana [online]. 2011, vol.17, n.1 [citado  2012-11-16], pp. 208-210 . Disponível em: . ISSN 0104-9313.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132011000100010.